Oklahoma

27/02/2011 15:18

A vida é uma busca constante de sensações.

Volto a Oklahoma treze anos depois. Aqui durante dez meses de intercâmbio, mudei de um simples garoto que sonhava em jogar basquete para retornar um homem ciente de que seu futuro guardava vitórias ainda maiores em uma carreira totalmente diferente.

É, talvez esse texto reflita muito mais uma viagem interna de passado e reflexão do que a viagem real pela estrada que estamos fazendo.

Cheguei aqui recebido por minha primeira “mãe americana”, Lennetta, uma simpática gordinha que se orgulhava de ter um quarto de seu sangue de origem comanche, uma das muitas etnias que foram jogadas no antigo território indígena de Oklahoma, perdendo rapidamente boa parte de sua cultura e identidade.

Seu marido Craig, não era muito falante, representando o típico caipirão americano, de bigodão até o queixo, usando sempre o mesmo jeans surrado sem camisa e com chapéu de cowboy. Seu filho James, que na época tinha treze anos, era boa gente, mas meio calado também.

O problema maior foi que na cidade de trezentos habitantes não havia muita coisa para fazer, além de sair de bicicleta pelas fazendas e sítios da região. O basquete não era permitido no colégio até o começo da temporada, me causando preocupação se este seria o lugar ideal onde atingiria meus objetivos.

Mas a temporada começou, quando os trâmites para mudar de colégio já haviam se iniciado também. E durante os poucos jogos que pude participar tive a surpresa: estava realmente jogando bem, em um lugar onde todas as partidas recebem centenas de torcedores de todas as pequenas cidades da região.

E foi numa dessas partidas, quando perdíamos por doze pontos, que saí do banco para liderar uma recuperação de cerca de cinco minutos. Antes mesmo de terminar o primeiro tempo, fiz uma cesta de três pontos, a cesta da virada. O público foi ao delírio, gritando e cantando meu nome. Durante cinco segundos que pareciam uma eternidade, me arrepiei, sem entender onde estava e até descuidando da defesa na jogada seguinte.

Terminei o jogo com vinte pontos, cestinha do jogo, que vencemos. Continuei como titular por todos os jogos até ser transferido. Na segunda-feira, meu nome saiu no jornal de Lawton, cidadezinha maior (cerca de trinta mil habitantes) que influencia todas as pequenas cidades da região. Tinha sido o destaque da rodada.

Mas foram aqueles cinco segundos que causaram uma sensação que dificilmente sentirei de novo. Imagino que todo atleta profissional tenha sentido isso alguma vez. Provavelmente se acostumam e aprendem a utilizar esse tipo de sentimento para fazer crescer seu jogo. Mas comigo não. Aquele foi o meu momento.

E o que eu fazia quando não treinava? Andava de bicicleta e... Bem, ficava deitado no quarto olhando o ventilador de teto rodar. E através dele, refletia. Via todo o filme da minha vida passar. Iniciava, inconscientemente, um intenso processo de auto-conhecimento.

Percebia, que apesar de uma habilidade maior com matemática e desenho, o que me levaria a áreas como engenharia ou desenho industrial, tinha alguma coisa mais forte que, talvez viesse até de família e que faria mudar meu foco para a biologia e a anatomia dos seis anos da faculdade de medicina.

E vi que as prioridades que existiam na minha vida de adolescente repentinamente mudaram. Tudo bem, o basquete também náo deu certo. O técnico da minha segunda escola era preconceituoso com latinos. Meu tornozelo direito torcia facilmente. Meu ombro direito começou a sair do lugar algumas vezes. Ou talvez eu simplesmente não fosse bom o suficiente para seguir uma carreira. Todavia já tinha definido bem que meu caminho envolvia uma arte bem diferente: medicina.

Sinceramente, não sei se as mudanças teriam acontecido tão facilmente se não estivesse isolado no meio das Grandes Planícies. Existe uma cultura que cresce, apregoada por palestras do Dalai Lama, que preza pelo desapego. Desapego de tudo e de todos.

Em nenhum momento isso significa desprezar suas origens e aqueles que ama. Pelo contrário. Simplesmente saber separar um momento para si próprio, para poder se conhecer melhor e poder agir melhor como pessoa em sua própria sociedade.

Isso serve principalmente para relacionamentos. Amor sem desapego, é apenas apego. Dependência. Uma simbiose tão grande que não permite que nenhum dos dois lados evolua. E não ajude o outro a evoluir. Mas também se encaixa perfeitamente no auto-conhecimento.

Vejo vários amigos e conhecidos que sofreram ou ainda sofrem porque não haviam se encontrado. Não sabiam o que queriam, que caminho seguir. Mas sabiam que tinham que fazer alguma coisa, pois isso era o que sua família esperava. Era o que seus amigos esperavam. E nisso perdiam anos da juventude tentando compensar sua frustração.

Somos todos dotados de uma energia forte dentro de nós, que emanamos em direção a todos que nos rodeiam. Somos influenciados pela mesma energia dessas pessoas. E se não conseguimos controlar nossa própria energia e gerar luz através dela, não seremos nada além de meros espelhos daqueles que nos rodeiam. E não seremos capazes de contribuir em nada para nossa sociedade.

E é por esses momentos, em que conseguimos canalizar a melhor energia possível para nós mesmos, é por esses momentos que vivemos. Pelos cinco segundos do jogo de basquete. Pelo dedo segurado por minha irmã recém-nascida há quinze anos atrás. Pelas caranguejadas com a família em Manguinhos. Pelo caruru da vitória com a família no Rio. Pelos desfiles do Bloco dos Mendigos em Ipanema.

Sensações totalmente diferentes, mas inesquecíveis. Que iluminam. E impressiona como é possível ter sensações tão boas sozinho. Em lugares ou situações em que tudo se torna sublime. E escrevendo isso lembro de outra situação similar, no meio do que seria uma catástrofe.

O sudoeste de Oklahoma é conhecido como o começo do Tornado Alley (corredor dos tornados), sendo comum o seu aparecimento na região. Durante minha estadia, presenciei dois. Durante o primeiro episódio, de dia, me refugiei no prédio do corpo de bombeiros, o mais resistente da cidade.

O tornado começa normalmente por uma chuva, que em pouco tempo se torna granizo, para virar uma tempestade de ventos extremamente rápidos. Mas curiosamente, o funil comum nos tornados que se pode visualizar a quilômetros de distância, não se formou neste dia. Me explicaram que é porque para esse funil poder ser visto é necessário um grande quantidade de poeira levantada.

E o que eu vi foi o seguinte cenário: o céu tomado por nuvens negras, como se fosse um teto de pedra. No horizonte, por baixo do teto, o céu encontrava-se azul de novo, sem uma nuvem presente. E por entre as nuvens negras, um espaço em espiral abria-se mostrando um céu azulzinho do mesmo jeito como estava no horizonte.

Fiquei admirando estupefato por alguns minutos antes de me dizerem que era hora de entrar para se proteger. Mas lembro perfeitamente a sensação. Não era medo (até porque confiei no que me diziam da resistência do prédio e de que o tornado era um F0, o mais fraco na classificação existente). Era uma contemplação da beleza da natureza, mesmo quando se mostra da maneira mais aterradora.

Sensação de contato e integração com a natureza similar a que senti em do alto do templo de Tikal ou aos pés da cascata de Salto Angel. Ou em Trindade, Trancoso, Itaúnas, Mury e tantos outros lugares por onde passei. Ou num dia bom de surfe, ou de velejo. No cenote do Chichen Itza.

Do outro episódio de tornados não gosto muito de lembrar, já que estava em um carro de um amigo, escondido debaixo de um viaduto, ouvindo um som que parecia uma locomotiva passando por cima de nosso capô. O funil era visto facilmente a cada momento em que relampejava. Graças a deus era outro F0.

Bem, voltando ao presente, Lennetta e Craig estão bem, são avós agora de um lindo casal. James mora em outra cidade, mas perto o suficiente para vê-los constantemente. Já não participam mais de pow-wows (festivais indígenas da região), apesar de ainda ostentar orgulhosamente pela casa retratos e pinturas de antepassados comanches. E não parecem guardar mágoa pela troca de casa.

Indiahoma continua minúscula. Mas foi campeã estadual de basquete apenas dois anos após minha saída. James estava jogando nessa equipe. Craig, na verdade, parecia mais falante e sorridente, aparentando ter amadurecido bastante. Ou ter se enternecido com o surgimento dos netos. Dentre altos e baixos, todos parecem bem felizes com suas vidas em Oklahoma.

Como a linha ondulatória que simboliza o Tao, a vida também balança em momentos bons e ruins. E o que aprendemos e conseguimos realizar durante os momentos ruins é que nos faz mais fortes e preparados para aproveitar e potencializar os bons momentos. Meu próprio relacionamento com meu pai durante a viagem tem sido assim.

E assim, tanto eu quanto Jone aprendemos com nosso convívio direto. Reconhecemos nossos próprios defeitos e começamos a procurar adequá-los de maneira a melhorar nossa vida em sociedade. E fortalecemos ainda mais uma amizade que vai muito além de laços sangüíneos.

Esses meus conceitos loucos de energia podem se encaixar muito bem em qualquer religião que pode dizer que em cada momento desses cheio de energia é Deus que está lá guiando e nutrindo minha alma. E isso é bom. É muito mais simples e confortante saber que a vida está aqui por um motivo e que meus próprios conceitos loucos são parte de uma grande missão.

Cada batizado, barmitzvah, casamento, nada mais são do que uma grande concentração de energia positiva emanada por todos aqueles que amamos. E que fazem valer a pena cada momento.

Mas penso que grande parte das pessoas começam a perder a fé, muitas vezes se chamando de ateus, quando na verdade simplesmente não sabem no que acreditar. E como Schopenhauer, acabam tendo uma visão pessimista de que, já que a vida irá acabar um dia, talvez seja melhor ir apenas em busca do seu próprio prazer egoísta. Ou então acabar com a própria vida.

Quando na verdade não percebem que sua influência sobre os outros retorna rapidamente para si próprio. Acabam virando espelhos. E não percebem que o grande prazer está simplesmente em viver novos e diferentes momentos.

Passar no vestibular. Ou na prova de título de especialista. Um abraço após sobreviver a um tornado. Ou terremoto. Ou uma enchente. Ver o sorriso de um paciente cem por cento recuperado. Um almoço e uma cama após sete dias na selva. Ou seis meses em um carro. Um beijo da mulher amada. Ter um filho. Ter um neto. Vê-los crescer, amadurecer. Aprender com eles. Viajar com eles pela próxima estrada.

               Numa busca incessante de sensações. 

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